CORRESPONDÊNCIAS
Em excerto de carta datada de 5 de Junho de 1977, incluída na obra LA CARTE POSTALE, diz Jacques Derrida: “O que prefiro no cartão postal é que não sabemos o que está à frente e o que está atrás, aqui ou ali, próximo ou distante, Platão ou Sócrates, o verso ou o reverso. Tão pouco o que mais importa, se a imagem ou o texto, se dentro do texto, a mensagem ou a direcção.” É este fragmento que se constitui como referência para o projecto CORRESPONDÊNCIAS que aqui apresentamos.
Publicado em 1980, em França, o texto mencionado enquadra-se na crítica operada por Jacques Derrida à tradição filosófica ocidental e, apesar do seu reconhecido carácter marcadamente intertextual e meta-literário, configura, porém, uma atitude política. Sem pretendermos aqui explicitar o chamado pensamento da Diferença, não podemos deixar de referir que esta obra se enquadra nessa operação que visa desconjuntar um sistema tornando visíveis a(s) sua(s) lógica(s), desconstruindo o pensamento logocêntrico, binário, as oposições da cultura ocidental: bem|mal, verdadeiro|falso, certo|errado, natureza|cultura, alma|corpo, claro|escuro, racional|irracional...
Como bem disse Derrida, sem “logoi” (conceitos) não existe nenhuma classe especial de conexões que seja especialmente “lógica”. Torna-se imperativo forçar a linguagem, quebrá-la, desfigurá-la, forçar os conceitos a dizer outra coisa. Neste movimento contra a origem, estabelecendo as condições da sua impossibilidade, filiamos o cartão-postal como carta aberta, sem segredo, sem frente nem verso, sem contraste entre metafórico e literal, retórica e lógica . Figura que trabalha no discurso.
A partir deste quadro teórico-crítico propomo-nos desenvolver o projecto CORRESPONDÊNCIAS, numa dupla vertente, a saber: (1) programação de sete exposições com uma aposta clara na descentralização; (2) organização de um Colóquio Internacional com o título DESTINATÁRIO DESCONHECIDO. Tendo como ponto de partida as afirmações de Jacques Derrida e o âmbito do projecto expositivo, não se pretende que o cartão-postal seja interpretado como simples meio de informação mas como produção de subjectividade, processo e vivência, ele próprio agenciamento de CORRESPONDÊNCIA. Não é apenas o carácter linguístico, gramatical ou retórico desta noção que nos propomos explorar mas sim o valor de uso que ela pode adquirir quando inscrita numa cadeia de situações possíveis. Metáfora da igualdade, sem frente nem verso, aqui ou ali, imagem ou texto, o cartão-postal situa-se neste tráfego da correspondência enviada, recebida, registada, desviada, devolvida, roubada, extraviada, anónima, confidencial, inviolável. Correspondência é também ligação, comunicação, relação, percurso, viagem, trajecto, complementaridade, reciprocidade. Tantas formas, tantos usos, tal como o “significado” que repousa em conexões de todo o tipo, entre elementos da linguagem e das nossas interacções linguísticas com o mundo. Consideraremos ainda, à maneira derridiana, a singularidade do direito ao segredo como direito político: a comunicação e o seu contrário, o Outro e o Mesmo, CORRESPONDÊNCIAS.
Numa época em que tudo se quer claro para ser comunicável, onde o segredo não tem lugar quando é obrigado a ceder ao totalitarismo do espaço público, ao excesso da confissão pública, reivindicar-se-á a possibilidade da incomunicabilidade como ferramenta de resistência.
Eduarda Neves
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CORRESPONDENCES
In a passage from a letter dated June 5 1977, included in LA CARTE POSTALE, Jacques Derrida states: “What I prefer in the postcard is that one doesn’t know where the front is and where is the back, here or there, near or far, Plato or Socrates, recto or verso. Nor what is the most important, the image or the text, and in the text, the message or the address.“ This excerpt is taken as a reference for the project CORRESPONDÊNCIAS.
Published in 1980 in France, the above mentioned text is part of the criticism operated by Jacques Derrida to Western philosophical tradition and, despite its recognized markedly intertextual and meta-literary character, it configures, however, a political attitude. Without intending to render explicit the so-called thinking of the Difference, we can not fail to mention that this work concerns an operation to disrupt a system, making its logic(s) visible, deconstructing the logocentric, binary, thought, the oppositions of Western culture: good|bad, true|false, right|wrong, nature|culture, soul|body, light|dark, rational|irrational ...
As Derrida correctly stressed, without “logoi” (concepts) no special class of connections is especifically "logic". It becomes imperative to force language, break it, disfigure it, force the concepts to say something else. In this movement against the origin, establishing the conditions of its impossibility, we affiliate the postcard as an open letter, without secret, front or back, without contrast between metaphorical and literal, rhetoric and logic. A figure working on speech.
Departing from this theoretical and critical framework we propose to develop the project CORRESPONDÊNCIAS in two axes, namely: (1) the programming of seven contemporary art exhibitions with a clear focus on decentralization; (2) the organization of an international conference entitled DESTINATÁRIO DESCONHECIDO [UNKNOWN RECIPIENT].
Taking the statements of Jacques Derrida and the scope of the exhibition projects as our starting point, the postcard is not meant to be interpreted as a simple means of information but as production of subjectivity, process and experience, itself an agencement of CORRESPONDENCE. We propose to explore not just the linguistic, grammatical or rhetorical character of this notion but the use value it can acquire when inscribed in a chain of possible situations. A metaphor of equality, without front or back, here or there, image or text, the postcard is situated in the traffic of mail sent, received, recorded, forwarded, returned, stolen, lost, anonymous, confidential, inviolable; correspondence is also connection, communication, relationship, route, trip, trajectory, complementarity, reciprocity. So many ways, so many uses, such as the "meaning" that dwells in all types of connections, between language elements and our own linguistic interactions with the world. We also consider, in the Derridian way, the uniqueness of the right to secret as political right: communication and its opposite, the Other and the Same, CORRESPONDENCES.
At a time when everything is meant to be clear so that it can be communicable, when secrecy has no place when it is forced to yield to the totalitarianism of public space, to the excess of public confession, the possibility of incommunicability as a resistance tool will be claimed.
Eduarda Neves
Projecto Correspondências - Contacto
Concepção e programação: Eduarda Neves | Produção: Maria Helena Maia | Design gráfico: Jorge Cunha Pimentel | Fotografia: António Alves